エピソード

  • Sentir no ar outra coisa além do perfume de adeuses. Outra conversa com Nuno Ramos de Almeida
    2025/01/01
    É difícil saber como se atravessa o nada deste arco, essa linha invisível do ano novo. Não há uma porta, talvez só um buraco, de um lado e do outro: o mesmo. Olhamos em volta, e, nas ruas, por toda a parte, menos do que um fantasma, só uma bruma retardada. Desde há um tempo já não há começos, e, deste modo, apoiamo-nos em rituais desgastados, e em todas as nossas manifestações apenas se exprime um cansaço fundamental. “Há no ar como que um perfume de ‘adeuses’”, notava Steiner. “A cronometria íntima, os contratos com o tempo, que em tão larga escala determinam a nossa consciência, indicam o fim da tarde sob formas ontológicas: que se referem à essência, ao tecido do ser. Chegámos tarde. Ou temos pelo menos a impressão de ter chegado tarde. A mesa foi levantada. ‘Vamos fechar, minhas senhoras e meus senhores, vamos fechar.’” E, no entanto, o castigo maior talvez seja precisamente a forma como tudo persiste, se arrasta. Sobre estes ciclos que não assinalam qualquer ímpeto nem um vago ânimo de revitalização, os nossos ‘cronistas’ dirão alguma bacorada num tom vagamente sarcástico, reduzindo-se todo o seu arsenal retórico a essa faca romba, mas descontando esses que se especializaram em produzir discursos que dão tudo como natural, e não assumem perplexidade ou espanto, nem muito menos ainda exprimem qualquer repúdio violento ou furor seja pelo que for, podemos socorrer-nos daqueles exemplos cada vez mais distantes dos seres comprometidos com um verdadeiro quadro de regeneração, revoltando-se diante desses elementos cerimoniais que só funcionam como aspectos de uma auto-ilusão. Tendo chegado ao nosso convívio este ano, por meio de uma generosa e instigante antologia, José Emilio Pacheco mediu bem essa estéril fanfarra no poema “O Novo Ano”: “O novo ano não bate à porta, não cumprimenta ninguém, fita-nos com a arrogância de quem nos tem nas mãos. Troça dos nossos intentos de cativá-lo. Pulverizará as boas intenções. Tem gozo no seu poder, sabe-o efémero, conhece as desgraças que sem equidade distribuirá, como sempre./ Na sua jurisdição de vida e morte, o novo ano arrasará tudo, não deixando sequer uma flor seca para o sentimentalismo da lembrança. Atropela com soberba de vencedor a nossa frágil dignidade, nós que o inventámos e que para ele erguemos um altar.” Estas cerimónias, na verdade, são uma convocação, uma dança da chuva tentando vincar o tempo, num esforço para exorcizar os aspectos dolorosos, e resguardar aqueles elementos que seria decisivo para nós preservar. Nesta devoção aos signos da temporalidade, está presente esse anseio constante de se transformar, e que é particularmente agudo nos momentos em que nos domina a impotência, e as circunstâncias nos fazem sentir descartáveis, imemoráveis. Em períodos em que somos forçados a comer as nossas derrotas, em que se não fosse por elas não teríamos mais nada, quando parece que os dias já nascem sujeitos a um efeito de escassez, dissipação, fez-se-nos imperioso sobreviver a uma época que não nos promete outra coisa senão mais do mesmo. Se nos debruçamos sobre os tímidos reflexos que observamos lançando um olhar sobre o futuro, logo o nosso vocabulário parece gasto, demasiado breve, balbuciando palavras como “ausência”, “esquecimento”, “indiferença”, “distância”. “E nunca mais, nunca mais, nunca, nunca”, acrescenta Pacheco. Parece sempre um tanto ridículo o presente que nos carrega, e nos obriga a rir do nosso aspecto. “Quão jovens, quão infantis parecem todos.” E até a morte parece ter mudado, não produzindo grande efeito no modo como interrogamos e convivemos com os nossos mortos. Há a notícia, depois uns vagos clamores, e depois uma incerteza sobre onde se está, quantos somos… “Agora mata-nos a velhice./ Agora entretém-nos/ a doença/ com um tabuleiro de esperança./ Agora por um instante a loucura/ parece mais serena.// Muito descansados, alimentados, vamos/ caindo um a um.” Toda a cultura reverteu em estratégias para maquilhar as expressões de desânimo, tudo tem apenas uma consistência efémera, actuando como uma distracção, sendo que o vício em paliativos começa muito antes de escutarmos a pulsação desse coração negro que acaba por devorar o outro. Neste primeiro episódio de 2025, gravado umas horas antes, não quisemos perder demasiado tempo com esses souvenirs da nossa dissolução nem com os brinquedos cuja função é estender essa segunda e desgraçada infância. Preferimos vadiar e afinar os instrumentos para espectáculo nenhum, virados para a hipótese de um mundo que de si mesmo nasça, impelido por este “atordoamento múltiplo/ estranheza/ de estar aqui, de ser/ numa hora tão feroz/ que nem sequer tem data”. Continuamos a assumir a nossa fragilidade, a admitir que se perdeu o mundo e não sabemos “quando começa o tempo de começar de novo”. A par de ...
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    3 時間 40 分
  • Luigi Mangione, um juiz selvagem em tempos de injustiça. Outra conversa com Luhuna Carvalho
    2024/12/27
    Não seria mau se, em vez de João e Maria, na lista dos nomes mais populares dados aos recém-nascidos surgissem nos próximos anos Greta e Luigi, em honra a essas figuras capazes de nos despertar para o escândalo do nosso modo de vida. Antes que nos seja possível reconhecer a necessidade do regresso da vingança como parte activa e meio de restituição do “princípio de coesão íntima do mundo” (Goethe), devemos começar por reconhecer como fomos expropriados dos elementos mediais, como não somos hoje capazes de produzir nem ecos nem reflexos, ou de obter uma representação da nossa experiência, configurando as virtudes e os modelos de existência humana que nos parecem adequados a habitarmos a terra de forma digna. “Há uma razão para vivermos encarnados”, como assinala a poeta Jorie Graham. “Aquilo que identificamos como o entorpecimento da vida quotidiana talvez não seja mais do que a sensação de incapacidade de formarmos experiências a partir das vidas que levamos, uma vez que estas em grande medida contornam o uso da panóplia de sentidos a que chamamos corpo, viciados como estamos nos ecrãs e nos atalhos sensoriais, nessas simplificações excessivas e que são próprias da realidade virtual. Não há nenhuma ideia cuja veracidade possa ser aferida se não passar pelos sentidos. Referimo-nos amiúde àquilo que mais nos une numa experiência partilhada como o nosso “senso comum”. Este era ou foi o nosso detector de mentiras.” Hoje sentimo-nos a viver existências degradadas ou demasiado parciais porque passamos a vida a tentar filtrar presunções fraudulentas, simulacros que induzem em nós esse estado de confusão e compram a nossa passividade por meio de vantagens materiais. Neste contexto, a própria moral é uma falsificação, pelo que aquilo que se exige de nós são todos os actos possíveis e imaginários de traição, em que cada instante significa um instante fatal, uma contradição activa no sentido que lhe dá Sartre, e que institui o tempo do rapto, da passagem, desse movimento do que se recusa a criar uma imagem fixa da vida. “Trair deriva do termo latim Tradere, que significa entregar, fazer passar, que, por acréscimo, veio a designar: abandonar, denunciar, desertar. Uma deslocação que implica uma fractura na ordem de pertença, uma ruptura no tempo.” Quando tudo ao nosso redor contribui para a estigmatização de actos de rebeldia, até de autodefesa, cumpre-nos corporizar essa expressão monstruosa que manifesta um repúdio inequívoco pelos aparelhos repressivos cada vez mais omnipresentes, e desde logo por superar todos esses impedimentos feitos de inércia, tabus e conformismo, recuperando a dignidade e a memória das lutas passadas, ao mesmo tempo que criamos “as nossas próprias leituras e narrativas, independentes daquelas ditadas pelas instituições e pelos meios de comunicação” (Rolando D’Alessandro). A partir do momento em que constatamos que vivemos hoje subjugados a esse impiedoso estado de excepção regulado de acordo com as necessidades dos mercados, num processo de financeirização coerciva de todos os planos da existência, somos levados a reconhecer que as situações político-morais que enfrentamos foram inteiramente deslegitimadas. E, como nos diz Sloterdjik, chegado esse momento, o que se chama existente deve ser sujeito a uma profunda revisão e, eventualmente, demolição. “Assim sendo, haveria que traduzir algo diferentemente a fórmula militante de Sartre para o século XX, ‘on a raison de se révolter’: quem tem razão não é aquele que se revolta contra a ordem existente, mas o que se vinga dela.” “No que diz respeito às implicações dos estados de excepção vingadores, o nosso estudo deve começar pela questão de saber de que maneira se pode pensar a transformação da cólera agora em vingança aplicada”, adianta o filósofo alemão. Agora sim era preciso que cada um de nós se solidarizasse com Mangione no momento em este apertou o gatilho para sacudir deste mundo o CEO da UnitedHealthcare. “Os nossos carrascos criaram-nos maus costumes”, eis uma constatação desgostosa de Grachus Babeus de que se serve Simone de Beauvoir para reconhecer o elemento de degradação moral a que os franceses se viram conduzidos durante o período da ocupação nazi. “Também nós, em face dos traidores que eram seus cúmplices, vimos brotar nos nossos corações sentimentos venenosos, de que nunca tínhamos saboreado o gosto." No ensaio “Olho por olho”, ela frisa que a partir do momento em que um homem se aplica a degradar de forma deliberada outro, tratando-o como uma coisa, e fazendo-o para seu proveito, “faz rebentar na terra um escândalo que nada pode compensar; é o único pecado contra o homem, mas desde que se cometeu nenhuma indulgência é permitida e pertence a qualquer homem o direito de o punir”. E, noutro momento, acrescenta: “É necessário punir sem ódio, dizem-nos. ...
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    3 時間 22 分
  • Da missa de galo à cabidela do costume. Uma conversa com Cristina Carvalho
    2024/12/24
    Àqueles a quem o Natal diz muito pouco ou mesmo nada, o avesso das expectativas, esse sentido que nasce de tanto se tocar o mundo de fora, de interpretar um elemento de desordem, um modo de alegria tão apropriada à realidade como uma traição, seria embaraçoso tentar falar dessa sensação absurda de paz de que gozámos alguns enquanto crianças, estando entregues à espera, a uma difusa ansiedade, enquanto numa sala ao lado os adultos, em grande número, falavam entre si, defendendo essa mística da possibilidade de se crescer com este mundo, e de isso significar uma expansão dos elementos de fantasia, quando a própria infância se confundia com um território defendido e em cujos limites, a imaginação se permitia todo o tipo de exageros. Mas não ficava tão longe assim do momento em que tantos mestres acabam por revelar-se meros vigaristas. Depois ainda há um outro lado, e uma outra realidade onde os adultos são eles mesmos seres roídos, e a quem agrada impor a sua experiência misturando em cada conhecimento que se transmite uma dose de crueldade. Esses não atardam aquela sabedoria que vem a degradar-nos, mas trabalham-na eles mesmos para os seus fins. Neste quadro em que uma criança se pode tornar a presa de um ser imensamente frágil e que sobre ela exerce a sua infecta potência, Tove Ditlevsen descreveu a infância dizendo-nos que esta é comprida e estreita como um caixão, e não se pode escapar dela sem ajuda. “Ninguém escapa à infância, que se cola a cada pessoa como um odor. Pode-se nota-la nas outras crianças – e cada infância tem o seu próprio cheiro. Não se conhece o próprio cheiro, e por vezes teme-se que seja pior do que os outros. Fala-se com uma rapariga cuja infância fede a cinzas e carvão e, de súbito, dá-se um passo atrás quando se sente o fedor da própria infância. Observa-se, à socapa, os adultos (…). À vista desarmada, não se nota que tenham tido, outrora, uma infância, e não há quem se atreva a perguntar-lhes como conseguiram ultrapassá-la sem que ela lhes marcasse o rosto com cicatrizes profundas. Assim, facilmente se suspeita de que se tenham servido de um atalho secreto e adoptado a sua forma adulta muitos anos antes de chegar o momento certo. Fizeram-no num dia em que estavam sozinhos em casa, quando a infância lhes oprimia o coração.” É quase certo que, se a muitos lhes fosse dada a possibilidade de regressarem, veriam já tudo de forma diferente, e mesmo que reconhecessem o esforço dos mais velhos para não se tornar aparente como a vida chega a parecer-se com uma cerimónia em que tudo parece desmoronar-se perpetuamente enquanto aqueles que dão por isso se empenham para que alguns possam gozar o intervalo dessa consciência. De algum modo, a muitos de nós já não escaparia a forma como os próprios pais viviam refugiados nessa capacidade de editar o mundo para os filhos. Vimos desse castigo suave, brando, benigno. Mas só fomos felizes enquanto alguma coisa nos era escondida. A verdade é que nenhum prazer neste mundo deixa de impor um custo, nada do que nos foi dado emergiu de forma espontânea, e de graça. Há um peso que fica e vai corroendo aquele que segurou os indícios de uma desolação que nos cerca desde a primeira hora. Não há aqui uma negatividade, mas o reconhecimento de que todo o abrigo e consolação teve um preço. Pode demorar uns bons anos, mas mais tarde ou mais cedo damo-nos conta de o ritmo da existência é o da perda. E para muitos pode mesmo ser difícil conciliar esse avanço que nos foi dado, essa margem da alegria que nos foi permitida por esses que preservaram para nós um território inexpugnável, para que o mundo não aplicasse sobre nós os seus métodos de extorsão. Esse precioso equívoco conferiu-nos essa facilidade de nos destacarmos da realidade, sermos bichos de outro mundo, produzindo essa orla que mais tarde nos parece que veio a ser apropriada para efeitos de publicidade. Os tons garridos que agora tomam conta dos anúncios, tudo isso devolve a sinceridade daqueles devaneios na sua forma mais destituída, podre. Como se todo aquele vagar, que fez de nós seres para quem o tédio chegava a ser a pior das ameaças, tudo esse programa que subsidiou em nós o espírito, viria depois a projectar-se como uma radiografia revelando o lado vazio, o motivo porque havia nos adultos sempre um silêncio, uma espécie de reserva, como se não nos pudessem dizer demasiado, como se a partir de certos limites houvesse um risco de a lógica animosa que nos nutria se virar contra si própria. Os mais hábeis em traçar essa fronteira, e defendê-la, reconhecem que teremos tempo para atingir o esqueleto cinzento e eterno que está por baixo. Para alguns, o resto dos dias poderá muitas vezes trazer a sensação de se estar tomado pela sufocação, enquanto, desde a infância, vamos escavando a constatação do nosso cadáver. Mas, assim mesmo, o Natal regressa muito mais tarde, nessa ...
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  • A época que roeu a juventude até ao osso. Uma conversa com António Guerreiro
    2024/12/20
    A cultura hoje é essa espelunca onde o espírito entra e sai como e quando quer, ficando sempre incólume. É mais um dos tantos instrumentos de prostituição ao dispor. Mas cada vez fica mais difícil ir da medida à desmesura, ou do cálculo ao delírio. A coragem, naquele sentido de uma forte declinação do nosso nome, há muito que se perdeu. Ninguém exige novas formas de sentir, novas formas de pensar, e não podíamos estar mais longe de cumprir o projecto de Nietzsche, que passava por fazer da cultura (fosse só isto de ler, ou mesmo escrever, tocar, cantar, pintar, desenhar, viver) uma experiência radical. Já ninguém toma por porcos esses que abdicaram do esforço de dizer o essencial, sem hesitações, sem desculpas. Cada um para seu lado busca patentear algum drama insosso que lhe sirva de ingresso. Mais valia que aparecesse por aí uma geração sem esta ganância de delimitar fosse o que fosse, antes preferisse servir-se da escrita para misturar tudo, focando-se nesse labor contínuo de nos misturarmos mais e mais, criando um caos pela primeira vez sem medo, como propôs alguém. Edmond Jabès admite que qualquer palavra dita em voz alta se mostra subversiva em relação àquelas que são silenciadas. A nossa época pouco mais tem inventado além de ruídos, sendo que só na gestão dos seus silêncios se mostra verdadeiramente estratégica. Em vez de uma recusa, apenas cautelosas retiradas. Incapaz de fazer verdadeiras escolhas, limita-se a resignar-se face ao estado de coisas, tentando tirar dali algum proveito. è um tempo de algemas, em que a toda a hora nos cruzamos com seres que morreram prematuramente. Tudo são mostradores, folhas de calendários, ampulhetas, medidores de toda a espécie. O relógio é quem dá aulas de música e ritma o sangue. A ter uma especialidade, aquilo que este tempo sabe como fazer melhor que qualquer outro é criar ausências, como notou Ailton Krenak, alimenta as ilusões apenas para desgastar e mastigar cada um, para depois vir pregar o fim do mundo. Mesmo entre os que insistem em falar de poesia, há sempre aquele esforço de degradar o elemento de paixão que esta comporta. Pronunciam-se e escrevem sobre poesia como se esta fosse uma tarefa, vinca Borges. "Todas as vezes que mergulhei em livros de estética tive a sensação desconfortável de ter estado a ler livros de astrónomos que nunca olharam para as estrelas." Se em tempos os poetas lembravam que deve esperar-se de tudo por parte do futuro, hoje, há um género particularmente sinistro de tipos que, em vez de repudiar esses entusiasmos, se dedica a escrever versos, numa espécie de excreção que, de tanto se publicitar como poesia, dá uma péssima ideia da coisa. Também uma certa ideia de juventude que se empenhava em realizar uma redenção da cultura moderna, e tinha uma aspiração anarquista e romântica, se vê por estes dias alvo de constantes campanhas de desmoralização e de bloqueio por parte dessa mesma categoria de usurpadores. Nestas figuras ilustradas, tudo é adiposidade, que lhes dá aquela convicção daqueles que se limitam a prever o pior. Ora, nada é mais fácil, como assinala Canetti, pois quanto mais terrível for a previsão, tanto mais será verdadeira. Mas admirável seria prever algo positivo, uma vez que só isso é que se mostra improvável. Nada pior do que dar por si em minoria face a este tipo de canalhas. A partir de um certo ponto, nem são realistas nem sequer pessimistas, tendo começado a apostar no pior resultado com uma convicção tal que o seu orgulho passa a depender disso. Rapidamente se colocam ao serviço desses cenários paranóicos, e tudo fazem no sentido de impossibilitar a alternativa. Imaginam-se dotados de uma frieza que lhes permite desmascarar todos esses subversores que ameaçam levar mais fundo a infecção delirante, e, no entanto, eles é que impõem um final para o qual não há saída. Querem extirpar e perseguir até ao último cada um dos mitos românticos de outros tempos, esta gente que morreu velha sem alguma vez ter beijado nos lábios qualquer reflexo da sua juventude, e, assim, servem-nos os velhos trastes do costume, como para justificar o seu reinado de múmias. Depois de uma certa idade, para eles ler Rimbaud é como saltar um muro ao fim-de-semana para cheirar linhas de coca nos lavabos do nosso antigo liceu. Já Artaud é simplesmente uma tremenda falta de educação, como quem coça a alma com a mesma mão com que pouco antes coçara o rabo. Nem se vê como possa a literatura ser mais que uma justificação airosa para passar a vida sentado, e só um louco para colocar em cima do escritor, do poeta, algum tipo de dever. Pois Artaud garantia que não lhe cabe ir encerrar-se cobardemente num texto, num livro, numa revista de onde nunca mais sairá, mas, pelo contrário, deve sair, andar cá fora, para agitar, para atacar o espírito público... Mas os nossos intelectuais que só saem de casa para ir ao ...
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    3 時間 46 分
  • As listas, os algoritmos e os espantalhos. Uma conversa com Patrícia Soares Martins
    2024/12/14
    Mais tarde, talvez façamos outra leitura do que significaram estes ensaios, como se em nós buscássemos o inimaginável, uma hipótese de romper com a cadência que nos leva a sentir que os dias se sucedem no sentido de uma constante subtracção. Talvez um dia as derivas que acumulámos possam permitir outra leitura, como um esforço que fizemos para nos mantermos num estado de perfeita disponibilidade de forma a que um tempo que sufocava entre impossibilidades por fim se oferecesse margem para romper com esta música desgastante que nos cerca e nos domina até ao enjoo. Nem há quem nos belisque, e é tão raro ouvir articulada com uma respiração nervosa e vibrante alguma conjugação de palavras que seja capaz de nos perturbar ou sacudir. Muitas vezes esbarramos com nós próprios, cumprimentamo-nos com menos que um aceno, um olhar que nos poupa àquelas palavras que, de tão circunstanciais, quase dão cabo de nós, e parece que estamos de volta a algum desses convívios cada vez mais desnecessários e onde temos dificuldade em saber quantos somos, e porquê este infeliz número, de tal modo que receamos estar a subdividirmo-nos... Não seremos meras réplicas, sequelas num enredo sem saída?, e parece-nos que cada tipo aqui presente, chegando a sua vez, tem o cuidado de dizer apenas o que for mais previsível, de fazer unicamente os mais breves comentários banais e de aparentar ter aceitado aquele convite formal e passado porventura meio dia em viagem para vir dizer ou ouvir tão-só o que não seja de todo consequente. Nem sei se não li já isto algures. O Breton diz que, em matéria de revolta, nenhum de nós deveria precisar de antepassados. Mas este é o ponto que parece mais difícil, antes mesmo de as coisas sucederem, de os acontecimentos se precipitarem, quando ainda parecia que estava ao nosso alcance desencadear alguma ruptura decisiva. Alguns, mais tarde, irão fantasiar-se nos seus relatos ao ponto de dizer que, por estes dias, viviam já como se retirados do mundo. Em breve irá emergir toda uma literatura de auto-exoneração, mas ser-nos-á difícil acompanhar essas inversões, a dizermos alguma coisa a seu respeito, se nos parecia que o objectivo de cada um deles foi nada dizer ou fazer que seja digno de nota. "A vida de algumas pessoas pode ser tão sucintamente resumida que não passa de uma porta que bate ou de alguém que tosse numa rua escura a meio da noite", notava Bradbury. "Olha-se pela janela, a rua está vazia. Quem quer que tenha tossido já desapareceu." A consciência parece ter-se tornado mais um dos aspectos do negócio. Fomos perdendo o chão, nós para quem essa foi a nossa primeira leitura. Foi com esse olhar perdido que aprendemos as primeiras letras. Era uma espécie de deficiência que nos defendia da coisa seguinte. Íamos, mas sempre como por acaso, como se por distracção ou empurrados. Talvez venha a ser possível fazer uma história dos diferentes caminhos que levam à literatura, desde logo uma história que passe bem longe do mercado. Uma narrativa sobre gente que se despenhou ou precisou desesperadamente virar-se para outras épocas, outros lugares. Mas uns anos mais tarde, quando viemos à superfície, éramos nós os grandes iletrados, não percebíamos patavina da realidade em que estávamos metidos. As filas continuam a avançar, continuam a não ter fim. Caminhamos na sonolência de mundos contrários, como diria o outro. Cada vez teríamos mais dificuldade em reconhecermo-nos mesmo se esbarrássemos contra nós próprios num destes ajuntamentos. Vamos sendo corpos sem eco, isto numa sociedade em que, há mínima perturbação, se é alvo de um processo, disciplinar ou não, e muitas vezes o pior é não ser clara a natureza. Até podem obrigar-nos a aguardar aqui ou ali enquanto nos martirizamos apenas para acabarmos o dia levando para casa a notícia de que fomos promovidos. Mas nem para nós é muito certo aquilo em que andamos metidos. É difícil chegar aos 35 ou aos 40 anos se se for demasiado directo, sem que isso se torne para nós um motivo constante de luta. Começamos a ser interrompidos e interrogados, e ficamos a dever explicações a meio mundo. Talvez, por isso, tantos se preservem na absoluta sensaboria dos ditos e expressões que não levam a coisa nenhuma. "Todo o bom raciocínio ofende", como notou Stendhal, sublinhado por Beauvoir, que prossegue a ideia, adiantando que, perante uma opinião peremptória, uma verdade definitiva, as pessoas amedrontam-se. "Tal é vaidoso, egoísta, mau, cúpido; enunciar-vos-ão com complacência os seus defeitos; mas se vós concluís: 'É um homem mau', o vosso interlocutor protesta: 'Eu não disse isso'; e acrescenta, talvez: 'Apesar de tudo, o fundo é bom'. Assim, o homem aceita ser pintado com pequenas pinceladas cruéis, mas, se o forçais a recuar para contemplar o seu retrato em corpo inteiro, fraqueja, não quer resumir, não quer concluir (...) repugna-lhe tomar partido: Deus ...
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    4 時間 19 分
  • Empregados da própria visibilidade. Uma conversa com Guilherme Henriques
    2024/12/06
    Aqui estamos entre todos os caprichos que nos dão a volta às ideias nas íntimas mudanças de cada dia e, muitas vezes, até por cansaço de nós próprios, acabamos invariavelmente por falar de política, e por decidir o que fazer com o país, especialmente se não sabemos o que fazer de nós próprios. Da mesa ali ao fundo, o Macedonio Fernández sugere que o problema se impõe pelo facto inescapável de que cada um de nós sabe profundamente duas ou três verdades complexas, mas os nossos contactos com a vida são de mil aspectos mais, de modo que fazemos quase todas as partes da nossa vida às escuras. O que nos agarra são uns quantos hábitos, em que insistimos, e que fazem o favor de afiar por nós aquilo que passa por uma personalidade, mas, cá dentro, para a maioria dos que se indagam, a sensação mais comum é de que escorrem pelos dias, e dependemos de alguns vícios para nos conciliar com a realidade. Para tantos, a sua própria natureza alienada é pressuposto da grandeza. Seja como for, por desconsolo, estamos a transformar-nos numa geração de tipos infrequentáveis, gente que troça de tudo, que balança entre a compaixão e o sarcasmo. E quanto ao bando que trabalhava a solidão através da arte, esses que partilhavam os seus juízos como quem prega uma partida aos demais, à moral e até a Deus, os chamados literatos, vivem hoje nessa imbecilidade auto-absorvida das suas conspirações que, sem a menor capacidade de efabular, se ficam pelo ressentimento. A falta de reconhecimento dos pares ou sequer de uns poucos leitores, compensam-na com uma dolorosa e insistente vanglória. E surgem-nos por aí cantando loas a si mesmos. Os egos deixam no ar um fedor a mortos-vivos. Vivem para as exéquias fúnebres, e não se cansam de nos maçar com a forma como gostariam de ser recordados. A peça é sempre a mesma, já a sabemos de cor, mas temos de aturar este tipo de actores que vivem embalsamados nos seus próprios maneirismos e exuberâncias desmioladas. Em lugar deste género de mártires constantes, antes são de preferir aqueles terríveis optimistas que não nos maçam com as suas desgostosas fantasias. "A vida é bela e assombrosa!", terá exclamado Maiakovski na véspera de se suicidar. Ao menos que a literatura nos pudesse servir ainda como vingança, escapando à frivolidade inconsequente desses dramas através da incrível densidade e heterogeneidade do material narrativo que nos é oferecido. Mil vezes os brutos que são capazes de enterrar as esporas no caprichoso murmúrio do mundo e impor-lhe os seus delírios, esses que se mostram de tal modo empenhados em produzir desvios vertiginosos que os lemos de corpo perdido, voltados para aquela luz, suspensos dela. Temos boas razões para estarmos fartos de queixumes e lamúrias, para não aguentarmos mais esses tipos esforçados, vulgarmente honestos, por vezes até competentes. Antes preferíamos ser trapaceados, levados por batoteiros, ilusionistas, magníficos vigaristas, gente que da nossa atenção fizesse uma autêntica feira, algum antro de perdição. "De que riem os homens que um dia irão morrer? Riem, porquê?", interrogava Prado Coelho... "Porque tudo é frágil, indeciso, e, no entanto, único. Erguem-se, sustentam-se, entreajudam-se, empurram-se no escuro, escorregam, tombam, ferem-se, movidos sempre por esta paixão do único." Evidentemente, esta malta perdeu a fé nessa instância autónoma, nessa reserva do espírito, nessa barricada onde nos multiplicamos e nos entregamos a inumeráveis transmigrações. Perderam a fé nesse "indício clandestinamente transmitido, morse obstinado, de que é preciso estar atento, mobilizado como um exército face ao inimigo". Merecem-nos muita pena todos esses que nunca tiveram a paixão ou a coragem para deixarem de ser apenas um. Existir-se agarrado à convicção de si próprio merecia ser levado em conta como uma aflição seríssima. Já outros, sentem-se infectados por tanto daquilo com que contactam. Assim, adoecidos desde tantos do tal, o problema não será reconhecer este estado de desagregação íntima, nem se temos escolha. A partir do momento em que se admite o princípio fraudulento que liga os dias entre si, suspende-se em nós aquele ritmo regular, congeminado por uma crença qualquer no curso do tempo, nas evidências do progresso e no valor de justiça, que, inerentemente, deveria indemnizar-nos pelo esforço, compensar todo o labor e sacrifício. O problema, na verdade, passa a ser outro: como melhorar o nível dessa patologia de que sofremos. Temos de elevar o grau daquilo de que sofremos, melhorar a doença. Neste episódio, raptámos um jovem crítico que ia ter uma sessão de padel e fingindo que tínhamos isco, puxámo-lo para o desaire que já se sabe. O Guilherme tem aquela amabilidade própria dos que têm ainda muito tempo, e aquela confiança de quem parece imbuído de uma serenidade aérea e musical, sendo um dos poucos que entendeu começar cedo ...
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    3 時間 27 分
  • Serenata de três vadios sob a chuva do futuro. Uma conversa com Bruno Peixe Dias
    2024/11/29
    O mundo tornou-se novamente exterior, absurdamente exterior, ao ponto de nos causar arrepios, mas a nós, hoje, tudo nos faz mossa. Nestas transfusões de sangue amarelo recebidas dos sistemas digitais, estamos cada vez mais uns bichos de aviário. E dividimos tudo em categorias, e temos infinitos protocolos de segurança, de desinfecção. Cá dentro, aquilo que nos provoca cócegas são as luzes, os sons, todas essas cores a pintalgar o cenário, e os ecrãs com as suas informações habituais. "Superfícies, superfícies, não há perigo se as atravessarmos, se estivermos nelas ou elas em vós. Fazei por continuardes superficiais, com as vossas emissões superficiais para receptores superficiais", aconselha Michaux. Lá fora chove, bátegas d'água, e tudo isso perturba o sinal. Nós mesmos somos afectados, o ambiente torna-se malsão. O espírito, o mecanismo cerebral tropeça, manobrando com dificuldade. Mas o que se há-de fazer? São cada vez mais constantes os temporais. Às vezes acordamos com a sensação de ter engolido uns baldes, e tudo isso nos subiu à cabeça. Esta, meio vacilante, começa a pregar-nos partidas, às vezes dolorosas. Estas nossas consciências subornadas pelo consumo até à letargia têm-se revelado bastante frágeis, escondemo-nos nessas superfícies, e as nossas ideias foram-se adaptando a meros reflexos, sem verdadeira profundidade. Quando falha a luz é uma autêntica catástrofe. E o pior é que sem essas meditações guiadas pela fiada de projectores, o vazio com o seu rumor de penas coloca-se a nosso lado e põe-se a devorar-nos o fígado. De resto, a companhia é terrível. Estamos cercados de toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. “Há muitos que, deixando cair um amigo, um amor ou o peso de um dever, se desculpam, a seus próprios olhos, evocando a obrigação de fidelidade para consigo mesmos — que é, muitas vezes, apenas o modo mais cómodo e cobarde de se enganarem a si mesmos. Pois quantas pessoas existirão capazes de conhecer tão exactamente as leis da sua própria evolução para poderem saber se essa infidelidade em relação a uma pessoa ou a uma coisa não era, ao mesmo tempo, o pior que cometeram em relação a si próprios?” Assim o viu Arthur Schnitzler. Vivemos cobardemente encerrados nas mais podres fantasias, sendo evidente como as crenças actuais se mostram cada vez mais débeis. "Aqui o limbo além o paraíso além o inferno/ que cheiro a despegado meu general". Tivemos a ambição de sair a investigar o nunca visto, derrotando cada um dos nossos caprichos, até sentirmos de novo algo que se pareça com um ímpeto famélico, fazendo desabrochar em nós um vício urgente, que nos sustente para o resto dos dias, confiando-nos à desgraça mais certa. Mas nisto tudo, de tanto nos tirarmos o pulso, levarmos em conta os indicadores deste evidente desgaste, que diagnóstico se pode fazer? Alguém ali levantou a mão... Talvez uma pergunta nos pudesse transportar noutra direcção. Mas esse é um dos dramas do nosso tempo. Quem é que ainda formula perguntas com real empenho em que lhe respondam? Descontando as crianças, quase ninguém. De tanto nos cuspirem em cima essa música que faz as vezes da consciência, já não sabemos exactamente onde começa ou acaba a nossa própria cabeça. Desfizeram o nosso juízo de tanto o mexerem com a colher de pau do senso comum. Seria terrível se falhasse a luz, mas talvez, passados uns meses, os pensamentos autónomos ressuscitassem. Estou outra vez a tremer, e sinto a falta de um braço que possa apertar. Deixa-me ler-te uma coisa do avô Teodoro: “Num dos seus ensaios, Aldous Huxley levantou a questão de quem, num lugar de diversão, estará realmente a divertir-se. Com a mesma justiça, pode perguntar-se quem é que a música para entretenimento ainda entretém. Na verdade, parece complementar a redução das pessoas ao silêncio, o desaparecimento da fala como expressão, a incapacidade de se comunicar de todo. Habita as bolsas de silêncio que se desenvolvem entre pessoas moldadas pela ansiedade, pelo trabalho e por uma docilidade pouco exigente. Por todo o lado, assume, sem dar nas vistas, o papel mortalmente triste que lhe coube no tempo e na situação específica dos filmes mudos. É apercebida apenas como música de fundo. Se já ninguém consegue falar, certamente já ninguém consegue ouvir." Já era muito tarde, desta vez. Esta tendência de formarmos bandas de três, andando à chuva, cobrindo distâncias com o vento a soprar e encher as velas do improviso é o que ainda assegura esta noivadiagem. Desta feita, foi o Bruno Peixe Dias quem exumou a estrela sextavada que há no corpo do rio, e trouxe o seu embalo profano habituado a carregar aos ombros filósofos completamente derramados e a soluçar dos prostíbulos até às moradas familiares, inventando pelo caminho as aventuras mais cativantes, de tal modo que as mulheres os acolhem como ...
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  • Heroísmos não, por favor. Uma conversa com Vítor Belanciano
    2024/11/22
    É preciso passarmos bem longe do heroísmo para irmos um pouco além das noções de superfície, desde logo a essas zonas turvas onde o nome sem glória aguarda a sua ocasião, mas para isso, para mergulharmos naquela experiência dos homens infames, não tanto por infamados, mas antes por não gozarem o prestígio e a fama que, aparentemente, todos não conseguem, hoje, deixar de ambicionar, para isso, como dizia o outro (mas qual deles?), para isso o indivíduo com um nome glorioso, o autor como proprietário da "sua" escrita, em suma o sujeito como o mais próprio da experiência, têm de ser abalados. Já seria alguma coisa se pudéssemos libertar-nos dos nomes. Todos temos um, e desfiamos de tanto andar à sua roda, a fazer esse esforço absurdo por nos mostrarmos coerentes com nós próprios. A identidade é esse prego, a mais desoladora e incapacitante das ficções. "Havia, haverá talvez que redescobrir o rasto instantâneo e fulgurante que nos deixam esses que se precipitaram para uma obscuridade, nessas zonas onde todo o 'renome' se perde"... Mas quem foi que disse isto? E se o não tiver dito exactamente assim, como fazemos? E se houver um desvio, uma deriva substancial, como se divide a coisa? Em Nietzsche já é mais difícil alterar uma vírgula que seja, e em Ecce Homo fez notar que "a minha sabedoria consiste em ter sido muitas coisas e ter estado em muitos lugares, para poder chegar a ser um, para poder tornar-me um". Mas Foucault adianta que este Um é radicalizado. Segundo Erígenes, segundo Borges, Deus não sabe quem é nem o que é porque não é um nem um quem. Isto faz dele o oposto preciso de uma imagem de marca. Mas nós colocámo-nos uns aos outros de castigo. Menos que homens, somos marcas, e devemos encontrar o nosso fundamento, hoje, nas mais fundas raízes do negotius, da privação e do desejo, aspirar a essa imanência das grandes pioneiras da indústria. Se é certo que o gosto de não citar pode conduzir-nos a insuspeitados pântanos, e que há formas de apropriação sacana, formas de trespasse, que sinalizam uma tremenda descortesia, é preciso também ter em conta o que disse Goethe numa das suas conversas com Eckerman: "Há na história de toda a arte uma filiação. Quando nos apercebemos de um grande mestre, verificamos sempre que se aproveitou do que os seus antecessores tinham de bom e que é isso precisamente que o torna grande. Homens como Rafael não nascem do solo espontaneamente. Têm as suas raízes na antiguidade, no melhor do que foi feito antes deles. Se não se tivessem aproveitado de todas as vantagens da sua época, não haveria muita coisa a dizer deles." Neste episódio, iremos fazer referência a outros casos, outros exemplos e autores que nos fazem relativizar a ideia de que o plágio é uma ofensa capital entre criadores, sendo que mesmo os grandes, aqueles que realmente admiramos, quase todos praticaram esses raptos ou roubos. Já temos tocado algumas vezes este tema, mas o horror persiste. Quase ninguém reconhece esse pudor maior daquele que preenche uns linguados de prosa, de forma ocasional e sem margem nem para grandes lucros nem grandes transtornos, e que mais do que recear ser acusado de rapinar os ovos de outras aves, receia sobretudo ser vulgar, vir por aí montado no rumor dessas banalidades de base que ninguém verifica se já outro antes disse, porque a todo o momento todos as repetem. A verdadeira sensibilidade muitas vezes está disposta a esse efeito de abertura em que uma outra escrita consegue escrever fragmentos da nossa própria quotidianidade, quando um dito transmigra para a nossa vida. Estou a copiar por cima do ombro de Barthes e ao mesmo tempo a adulterar certas frases de modo a fazer valer aqui um argumento que bem pode perder-se nos arquivos. Não seria de preferir essa selvajaria inspirada, divina, a de receber do texto, qualquer que ele seja, uma espécie de ordem fantasmática, e saborear essa distância, essa suspensão do seu ponto de vista, ou de qualquer outro, antes procurando tecer um tempo interior que represente não um indíviduo mas uma forma de co-existência? "O autor que sai do seu texto e entra na nossa vida não tem unidade", garante Barthes. E acrescenta: "é um simples plural de 'encantos'". Mas, hoje, nem mesmo na literatura se tem direito de passagem, tudo deve ser publicitado por lotes, obras enfileiradas nas estantes, ou jazigos num cemitério. Esta gente não vê a vantagem na dispersão, num canto descontínuo, de amabilidades, acenos, numa incessante troca de correspondências. Não os anima a proposta de um texto que seja destrutor de qualquer sujeito, um frémito que nos dispa dessas miseráveis fantasias neste baile cada vez mais inóspito. Seria melhor que ardesse de vez esta impostura, que o sujeito se dispersasse, que pudéssemos deambular fora de qualquer destino, um pouco como as cinzas que se lançam ao vento depois da morte, mas fazê-lo antes de morrermos, de modo a que se ...
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